24 março 2014

Reportagem Especial: O Nascimento da Linguagem

O nascimento da linguagem
A aquisição da fala demanda o desenvolvimento de diversas linguagens. Para tanto, a escola precisa permitir o movimento infantil e a interação com outras crianças e adultos.
 
 
Maria Fernanda Ziegler
Primeiro são sorrisos, uns gritinhos e depois um “bababa” ou “mamamam” ou ainda um “papapa” que fazem com que a família inteira se emocione. O momento é tão importante na vida do bebê que, até mesmo décadas depois, a maioria dos pais lembra tintim por tintim como foi a primeira vez que o pequeno “falou”.

O desenvolvimento da linguagem oral é realmente um marco que deve ser lembrado. Aparentemente, o bebê come e dorme a maior parte do dia, mas já nos primeiros meses de vida há uma profusão de conexões entre os neurônios dos pequenos que vai resultar na capacidade da comunicação e da fala. O processo também envolve desenvolvimentos fisiológicos complexos e, junto com a capacidade de andar, é a principal aquisição dos primeiros anos de vida. Não é, de fato, pouca coisa o que acontece no cérebro dos bebês e sua capacidade de aquisição nesse período.

Primeiro o movimento

A aquisição da linguagem é um processo construído pela criança muito tempo antes de ela falar a primeira palavra. O balbuciar é cada vez mais entendido por cientistas como um precursor essencial da fala e do desenvolvimento emocional, cognitivo e social dos bebês. Tanto que pesquisadores descobriram que em todo o mundo, independentemente do idioma  em que estão inseridos, os bebês desenvolvem a linguagem de maneira similar. Eles balbuciam de forma parecida e, durante o segundo ano de vida, moldam seus sons nas palavras de suas línguas nativas.

É um processo extremamente complexo e, para apoiá-lo, é preciso levar em conta também o desenvolvimento de vários outros tipos de linguagem, como a troca de olhares, os choros, vocalizações, gestos e os movimentos dos bebês. “Comunicação tem a ver com movimento. Repare que, antes mesmo de falar, o bebê já mexe o bracinho em conformidade com o que pretende comunicar”, diz a neurocientista e antropóloga Elvira Souza Lima, pesquisadora especialista e consultora em desenvolvimento humano.

O ato da fonação depende também de circuitos neurais para a movimentação da mandíbula, língua, músculos torácicos e diafragma. “Antes de o aparelho fonador estar completamente desenvolvido e conseguir balbuciar, o cérebro da criança vai desenvolvendo as outras áreas da comunicação. Essas linguagens são complexas e é preciso um desenvolvimento biológico para tal. As aquisições são muito grandes nestes anos. O cérebro do bebê tem uma atividade enorme, uma plasticidade enorme, que depois com o tempo diminui”, diz Elvira.

Língua universal

A cientista Nairan Ramirez-Esparza, do departamento de psicologia da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos, explica que por volta dos seis meses as crianças são capazes de identificar as diferenças entre os fonemas usados em todo o mundo e, conforme vão sendo expostas a um determinado idioma, elas vão focando a habilidade nessa língua. “As crianças americanas e japonesas são igualmente boas em discriminar as propriedades acústicas que distinguem o som 'rá' de 'lá' quando têm seis meses, mas as crianças japonesas perdem essa capacidade à medida que ficam mais velhas, pois o 'lá' não faz parte da sua língua nativa”, explica.

Os pesquisadores interpretam isso como prova do compromisso neural durante o primeiro ano de vida; conforme aumenta a sensibilidade à fala nativa, a sensibilidade para sons da fala não nativa vai diminuindo. Elvira ressalta que no caso das crianças bilíngues a aquisição dos dois idiomas ocorre de modo paralelo. “Note que a criança bilíngue usa cada idioma para determinadas ocasiões”, diz.

Sem pressa

A fonoaudióloga Beatriz Servilha Brocchi, que fez sua tese de doutorado sobre a influência da interação mãe e criança no desenvolvimento da linguagem, alerta que pais e professores devem estimular, mas não apressar o processo de desenvolvimento da linguagem.

“Enquanto a criança não fala, ela já vai criando repertório a partir do que vivencia na interação com adultos e outras crianças. Quando passa a falar, ela vai expressar tudo aquilo que está no seu repertório”, explica a pesquisadora, que defende que o diálogo entre mãe e filho – ainda na gestação e já nos primeiros dias de vida – é primordial no desenvolvimento da linguagem. “A mãe, e o pai também, são considerados coautores no desenvolvimento comunicativo-linguístico do filho”, afirma.

Já a partir das primeiras semanas de vida,

os bebês são capazes de reconhecer rostos e é importante que os pais falem com seus filhos. “Notamos que até mesmo no caso de crianças que nascem surdas é importante que os pais falem, interajam e cantem para elas. Elas não escutam o som, mas vão aprender a reconhecer o movimento da boca, a expressão do rosto”, diz a fonoaudióloga Cristina Ornelas Peralta, que trabalha com a adaptação de crianças que fizeram o implante coclear em São Paulo.

Se a criança ouvinte ainda não fala, não é impondo que se conseguirá resultado. “Muitas vezes a criança ainda não fala, só aponta para o objeto. Não adianta pressionar a criança dizendo que se ela não falar o adulto não vai pegar a bola, por exemplo. Porque a criança vai ficar inibida e não vai falar. Ela ainda não está pronta para falar. O ideal é que o adulto pegue o objeto e pergunte: ‘Você quer a bola? Vou pegar a bola para você’. Pois, assim, a criança vai aprendendo a reconhecer o som ou como falar aquela palavra”, sugere.

Elvira defende atividades com música e movimento nas salas de aula dos pequenos. “A fala é uma sonoridade adaptada a uma melodia. As escolas de educação infantil precisam trabalhar com música e outras atividades artísticas, como o desenho, para estimular essas linguagens e o movimento.”


O tempo de cada um


Há consenso entre os especialistas de que não existe uma tabela com prazos e datas para seguir no desenvolvimento da linguagem oral. “Tabelas são bem reducionistas. Não dá para seguir à risca e determinar quando a criança vai falar”, diz Elvira.

Beatriz afirma que os pais e a escola só devem começar a se preocupar se a criança de dois anos e meio ou três anos ainda não formula frases. “O desenvolvimento da linguagem vai depender de criança para criança, de estímulo para estímulo. Ele não é fixo. De modo geral, por volta de um ano de vida, a criança começa a falar as primeiras palavras. Depois, com um ano e meio pode ser que já consiga juntar duas palavras, fazer pequenas frases de duas palavras. Quando estiver com 24 meses de vida a criança já pode ter um repertório maior”, diz.

Ao contrário da preocupação comum dos pais de quantas palavras o filho já fala, a regra é concentrar em qualidade. Vale ler livro com as crianças no colo, falar claramente e repetir a palavra algumas vezes na mesma frase. “Os pais ou os professores, quando falam com a criança do modo moderese [uma fala mais infantilizada, mais curta, mais voltada para a criança] conseguem atraí-la. Com o tempo, a criança vai desenvolvendo a linguagem a partir de brincadeiras, ouvir histórias, música e o adulto deve variar esta forma de falar”, diz Beatriz. Vale lembrar que o desenvolvimento dos pequenos é rápido.

Nairan, que estudou os efeitos do moderese no desenvolvimento da linguagem dos bebês, afirma que, além de estabelecer reações específicas com os pais, a maneira de falar oferece bons exemplos fonéticos que são mais claros para o entendimento da criança. “Inicialmente, os pequenos se beneficiam mais desse estilo específico de interação do que apenas de ouvir a palavra. Eles respondem a essa abordagem por haver uma forte interação; não são apenas palavras que estão sendo enviadas para o cérebro dos bebês”, diz.

Mesmo que a forma mais infantilizada de falar com o bebê seja inicialmente benéfica, é preciso tomar cuidado para não exagerar. “Falar ‘tetê’ ao invés de chupeta, ou ‘au au’ e ‘miau’ no lugar de cachorro e gato faz com que a criança não crie o repertório correto. Ela não vai falar chupeta, cachorro e gato se nunca ouviu estas palavras”, diz Beatriz.

Da mesma forma, falar sempre no diminutivo com a criança ou ainda falar errado é prejudicial para o desenvolvimento da linguagem. A criança vai falar exatamente aquilo que ouve. “Você conhece alguma criança que não sonha em crescer? Esse comportamento é do ser humano. O importante é saber que condições a escola vai dar para promover isto”, questiona Maria do Rosário Longo Mortatti, professora do departamento de didática da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Imitando, imitando

Os cerca de 100 bilhões de neurônios formados no final da gravidez e nos primeiros anos de vida do bebê – há controvérsia neste número e alguns cientistas contabilizam 87 bilhões – já estão trabalhando a todo o vapor nos primeiros dias de vida. Ao mesmo tempo que o aparelho fonador está sendo formado, o bebê já é um grande observador que aprende a partir da imitação.

Portanto, é de extrema importância que eles sejam incentivados pelos pais e pela creche. Não apenas restringir que a criança repita palavras, mas permitir que ela imite movimentos e explore os espaços. ”Repetição de palavras não é desenvolvimento de linguagem, é treino. Ao brincar, as crianças se habituam a aproximar imagens a símbolos concretos, conduzindo posteriormente ao conceito abstrato. Essa atividade de interação é importante para o desenvolvimento da linguagem. O símbolo pessoal é uma etapa que permeia o objeto e o signo”, diz Elvira.

Cérebro, boca e movimento

Estudo realizado em 2013 na Universidade de Washington, nos Estados Unidos, sobre o motivo de os bebês aprenderem imitando foi o primeiro a mostrar que o cérebro dos bebês apresenta padrões de ativação específica quando observa um adulto realizar uma tarefa com diferentes partes do seu corpo. Quando os bebês de 14 meses, monitorados por eletroencefalograma, viam um adulto usar a mão para tocar um brinquedo, a área do cérebro que corresponde aos movimentos da mão se iluminavam. Quando outro grupo de crianças assistiu um adulto tocar o brinquedo usando apenas o pé, a área do cérebro do bebê com aparente atividade foi a do pé.

De acordo com Andrew Meltzoff, coautor do estudo e codiretor do Instituto de Ciências do Cérebro e Aprendizagem da Universidade de Washington, os bebês são cuidadosos observadores de pessoas, preparados para aprender com os outros. E a falta de interação é a maior crítica dos especialistas às escolas de educação infantil. “É só comparar o desenvolvimento de uma criança que ficou o tempo inteiro deitada, confinada em um berço, com aquela que interage com outras crianças e que está livre para explorar o mundo ao redor”, diz Elvira.

A fonoaudióloga Beatriz concorda com Elvira. “Notamos que creches ou pais que prezam mais pelo cuidado do que pelo estímulo não têm uma contribuição tão elevada para a criança. O desenvolvimento da linguagem está em compartilhar e ter experiência”, diz. “É preciso estimular situações de desenho para crianças de 4 e 5 anos. Para as de 3 há a possibilidade do uso de marionetes. A convivência com as outras crianças vai criar esta troca”, complementa Elvira.

Já que o desenvolvimento da fala está ligado ao desenvolvimento de diversas linguagens, como a do olhar, do gesto e do toque, a escola precisa permitir o movimento e a interação com outras crianças e adultos. “A escola deve criar situações que vão caracterizar a linguagem, como a brincadeira de faz de conta dos papéis dos adultos, mímica, teatro. E depois ouvir a criança contar uma história, e assimilar esta história”, diz Daniela Leonardi, diretora pedagógica da Escola Cidade Jardim/PlayPen, em São Paulo (SP). Ela acredita que é preciso que as aulas tenham consistência para um trabalho de médio e longo prazo.

Outras linguagens

A ideia é que escolas de educação infantil trabalhem a linguagem de uma forma mais global. De acordo com Maria Carmen Barbosa, autora de diversos livros sobre educação infantil, durante muito tempo a linguagem trabalhada na escola permaneceu vinculada exclusivamente àquela que trata da língua portuguesa. “Desta forma, outras formas de linguagem como o desenho, a modelagem e a matemática estão presentes no mundo como significação, expressão, comunicação e produção, mas nem todas as crianças têm acesso a elas“, afirma Maria Carmen em documento do projeto de cooperação técnica do Ministério da Educação e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para a construção de orientações curriculares para a educação infantil.

“O desenvolvimento oral vai além de um item no conteúdo programático. Se um professor coloca no programa aula de oralidade, toda a carga de significado se desfaz. Ou o professor vai chegar à sala de aula da educação infantil e dizer: ‘agora vocês podem conversar e interagir para desenvolver a linguagem’. Não é possível tornar disciplina algo que é do desenvolvimento humano”, defende Maria do Rosário Longo Mortatti, professora do departamento de didática da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e especialista em alfabetização.

Elvira defende que é preciso estimular sem apressar, e que a escola deve se aproximar dos pais como forma de combater a ansiedade, comum, de que os pequenos soltem o verbo. “A comunicação é muito mais ampla que a fala. É movimento. A escola precisa passar essas informações para os pais. Os pais precisam desacelerar”, pondera Elvira.

A neurocientista afirma que a pressa de que a criança fale uma variedade de palavras pode acabar inibindo os pequenos. “Nos dois primeiros anos de vida o cérebro do bebê vai construindo o maior legado da nossa espécie: andar e falar. A grande questão do ser humano é a comunicação de ideias, sentimentos e informação. E a criança investe nisso”, ressalta.

A base do pensamento

Muito mais do que um desenvolvimento biológico, a capacidade de falar serve como uma ferramenta para a aquisição da cultura e a pressa pelo alcance da linguagem oral também pode estar ligada ao processo de alfabetização. A linguagem envolve uma série de questões que vão desde a formação do aparelho fonador até a criação de novas redes neurais no cérebro do bebê. Culturalmente, a criança forma memória, aprende a interagir socialmente e, a partir da comunicação, se torna apta para ser futuramente alfabetizada.

“O desenvolvimento da linguagem é crucial não só para a alfabetização, mas para a condição humana. Não é só para fins pragmáticos. A criança nasce no mundo da linguagem; não só da fala, mas dos sons, dos sentidos, das relações interpessoais. O desenvolvimento da linguagem é fundamental para a construção de mundo da criança”, defende Maria do Rosário.

Maria do Rosário ressalta que o motivo disso está na relação direta entre pensamento e linguagem. “Ao adquirir a linguagem há também uma mudança no pensamento, pois ao aprender uma língua a criança está aprendendo a formular modos de pensar”, explica. Para ela, o grande problema da alfabetização está no fato de as escolas não fazerem essa relação. Imagina-se, comumente, que a alfabetização não guarda relação com mais nada. “O ensino da escrita é parte do desenvolvimento da linguagem. Quando a criança de 7 anos aprende a escrever, ela já é fluente no idioma e já adquiriu uma série de signos e significados.

A escrita é outra modalidade de uma mesma língua”, diz.

A antropóloga e neurocientista Elvira Souza Lima explica que todos os movimentos que a criança vai constituir a partir do desenvolvimento da linguagem, como troca de olhares e gestos, envolvem questões culturais. “Ao brincar, a criança passa a conhecer a si própria e aos outros e entende as normas sociais de comportamento e hábitos determinados pela cultura”, diz.

Desta forma, a vivência na escola deve seguir uma rotina.

“É preciso criar modelos que sejam uma referência positiva para a criança”, diz Elvira.

O desenvolvimento da linguagem permite também a inserção social e cultural. “Quando fazemos parte de uma cultura linguística, além de influenciar na forma de pensar, o desenvolvimento da linguagem permite que a criança tenha certos hábitos que são passados a partir da integração social. Ela aprende modos de vida, a  hora em que deve falar e escutar em uma conversa, como interagir com os pais, amigos, professores e por aí vai”, diz a fonoaudióloga Beatriz Servilha Brocchi, que fez sua tese de doutorado sobre a influência da interação entre mãe e criança  no desenvolvimento da linguagem.

Biológico e cultural

Ler e escrever são aprendizados culturais. “A fala tem uma questão biológica forte, mas a riqueza do vocabulário e o desenvolvimento da fala também estão relacionados com a interação com o outro, guardam relação com a interação da criança com o mundo. A criança pequena tem várias formas simbólicas de interpretar a linguagem, seja pela dança, o faz de conta, ou a música, por exemplo”, diz Daniela Leonardi, diretora pedagógica da Escola Cidade Jardim/PlayPen, em São Paulo.

Maria do Rosário defende que o desenvolvimento da linguagem faz parte de um processo de crescimento. “É impossível construir significado e sentido se não for por meio das expe-

riências. É preciso oferecer modelos para a criança ver o mundo de forma diferenciada. Para cima, para a frente”, diz  

Nenhum comentário:

Postar um comentário